Como médicos são assediados pela indústria farmacêutica para prescrever medicamentos

Laboratórios utilizam dados sigilosos das receitas para pressionar profissionais, que recebem brindes, amostras grátis e até inscrições em congressos, em troca de prescrições  

Os laboratórios internacionais são os principais responsáveis pela descoberta de novos medicamentos. Mas até onde vai o interesse de mercado e até onde vai a preocupação com a saúde da população? 
Indústria Farmacêutica: Pesquisa de Novos Medicamentos 

Preste atenção neste dado: 56 laboratórios nacionais e estrangeiros são responsáveis pela venda, em farmácia, de 82% dos medicamentos de referência do mercado brasileiro e de 33% dos genéricos. Eles são laboratórios de pesquisa e investem parte de seus recursos no desenvolvimento de novos medicamentos e são, também, responsáveis por fazer os estudos que comprovem a eficácia e a segurança das novas drogas. Isso quer dizer que boa parte dos remédios que a gente toma foi criada e testada pela mesma empresa privada. 

Na opinião do médico, neurocientista e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Olavo Amaral, esse cenário compromete a isenção do trabalho científico.

Olavo Amaral: "Isso é uma decisão política que se tomou não aqui, mas nos EUA, provavelmente em outros lugares, há décadas, no sentido de facilitar, de ter propriedade intelectual e as patentes como a força motriz da pesquisa e que ela seja financiada pelo setor privado. Mas o fato é que, hoje em dia, parte muito grande da pesquisa clínica feita no mundo é feita pela indústria farmacêutica. E aí você tem um conflito de interesse grande, porque, na verdade, você tem que decidir se um remédio funciona ou não, por exemplo, para uma determinada doença, e eles têm todo o interesse financeiro que funcione e, enfim, perdem muito dinheiro se não funciona."
O Olavo Amaral não está sozinho nas críticas, que ecoam também fora do Brasil. O psiquiatra e epidemiologista inglês Ben Goldacre, por exemplo, revelou, em palestra da série TEDTalks, alguns mecanismos que a indústria farmacêutica usa para melhorar a imagem dos seus medicamentos. O principal deles é não publicar resultados de pesquisa negativos. Ele cita um exemplo que ocorreu nos Estados Unidos. De todos os testes feitos para aprovar 12 antidepressivos, 38 eram positivos e 36, negativos. Mas, nas revistas científicas, só três resultados negativos foram publicados, contra 37 positivos. Ou seja, a informação que chega para os médicos e para o restante da comunidade cientifica leva a conclusões enganosas sobre a eficácia dos medicamentos. Trocando em miúdos: mesmo que o seu médico leia todas as publicações científicas sobre o medicamento que ele vai te prescrever, o que é tarefa árdua para quem tem pacientes para examinar de hora em hora, ele vai conhecer só parte das pesquisas feitas pela indústria e não vai ter uma noção real sobre a qualidade daquela droga.
A Interfarma é a associação que reúne aqueles 56 laboratórios que eu citei no início da matéria. Eu conversei com o diretor, Octávio Nunes, e ele negou que a indústria esteja omitindo informações negativas sobre os medicamentos que desenvolve.
Octávio Nunes: "Quando você tem um medicamento que traz benefícios – e os medicamentos provam isso por meio das pesquisas e, também, por se submeter às exigências regulatórias de cada país onde ele é submetido – isso já prova que o medicamento é eficaz, porque, senão, ele não seria colocado no mercado. E, depois, quando você tem um medicamento ou alguma substância que, no meio do caminho, talvez não tenha trazido bons frutos, divulgar isso como sendo, digamos, um fracasso da indústria, é um pouco injusto. Porque, na verdade, o que a indústria faz é tentar, cada vez mais, e tentar sempre, fazendo grandes investimentos, enormes investimentos em medicamentos até que um possa dar um resultado eficiente a ponto de se tornar um medicamento."
No Brasil, a agência reguladora responsável pelo registro de novos medicamentos é a Anvisa, que não nos concedeu entrevista, mas enviou nota explicando as exigências feitas às empresas para aprovação e registro de um novo medicamento. Segundo a nota, os estudos conduzidos pelas empresas farmacêuticas devem seguir normas estabelecidas pela Anvisa sobre aspectos técnicos, metodológicos e éticos da pesquisa para que levem a resultados confiáveis. E os dados de segurança e eficácia obtidos nas pesquisas devem ser apresentados pela empresa para análise da Anvisa. Na visão do médico e professor Olavo Amaral, essas exigências regulatórias não garantem a confiabilidade dos dados.
Olavo Amaral: "Não tem ninguém lá dentro, você tem que mandar seus papéis, seus dados, seu tudo, mas, em última análise, se você escolher não mandar alguma coisa ou resolver retirar uma análise dali, a pesquisa está sendo feita integralmente por gente da indústria, é muito difícil você controlar essas coisas. (...) Mesmo que as pessoas estejam bem intencionadas é muito difícil pensar que sejam completamente isentas. Análise de dados é uma coisa complicada, você pode analisar de várias maneiras e que elas não vão tender a analisar os dados de uma forma mais favorável se elas têm um interesse financeiro gigantesco em que aquilo ali funcione."
Mas nem tudo está na mão da indústria. O centro Cochrane, por exemplo, é uma entidade internacional sem fins lucrativos que reúne 30 mil cientistas voluntários da área da saúde do mundo todo. Seu papel é mapear as informações científicas publicadas, separando o joio do trigo, e oferecer essa análise gratuitamente para médicos e pacientes. Quem conversou comigo sobre isso foi o diretor do Centro Cochrane Brasil, Álvaro Nagib Atallah.
Álvaro Nagib Atallah: "A Cochrane força, há 20 anos, a indústria a fazer pesquisa de melhor qualidade e publicar aquelas independente do resultado, se o resultado as favorece ou não. (...) Exemplo, um do próprio Centro Cochrane do Brasil, tinha droga que a gente viu que tinha má qualidade. Nós mapeamos para o Ministério, que simplesmente deixou de utilizá-la, eles ficaram muito bravos. E, depois, a realidade mostrou, as pesquisas mostraram, que nós estávamos certos e a própria indústria tirou o medicamento, que custava 40 mil dólares cada injeção, tirou do mercado."
Segundo Nagib, as análises feitas pelo Centro Cochrane estão disponíveis no site da instituição em linguagem compreensível tanto por médicos quanto por pacientes e gestores de saúde. Mas o pesquisador defende a criação de mais centros independentes de pesquisa, tanto nacionais quanto internacionais, para distanciar a pesquisa científica dos interesses da indústria.

Indústria Farmacêutica: Relação Médico x Indústria x Farmácias 

Para emplacar um novo medicamento, laboratórios oferecem amostras de remédios e vantagens, como brindes e passagens aéreas, para médicos. Além disso, algumas farmácias fornecem dados de receitas médicas para os laboratórios. Confira, no segundo capítulo da Reportagem Especial sobre a indústria farmacêutica.

Sabe aquela pessoa bem vestida que chega ao consultório médico com uma mala preta de rodinhas e, geralmente, é chamada pelo médico antes de você? Ele, ou ela, é o representante dos laboratórios farmacêuticos e tem o papel de apresentar aos médicos os produtos da empresa, dando informações técnicas sobre eficácia, segurança e aplicação de medicamentos. Era chamado antigamente de propagandista, pois é isso que ele faz.
Mas não é só isso não. Eu conversei com um ex-representante, que não quis se identificar, e ele me contou quais eram suas outras funções dentro do consultório. Basicamente, ele deveria oferecer ao médico benefícios para induzi-lo a receitar os medicamentos do laboratório que ele representava.
Representante farmacêutico: "O que o representante oferecia pro médico em troca do receituário? Passagem para congresso, isso tanto nacional quanto internacional, às vezes, dependendo da conversa, eram passagens pra família inteira, mais o valor do congresso mais estadia, isso dependendo de cada laboratório e de cada médico. Reforma em clínica e consultório. No final, assim, 2008 até 2010, começaram a surgir pagamento de alguns laboratórios para poder visitar os médicos em clínica e hospital."
Segundo o ex-representante, o ciclo se fecha nas farmácias, que fornecem aos laboratórios a confirmação de que o médico presenteado de fato receitou o seu medicamento para os pacientes.
Representante farmacêutico: "Existe um programa, hoje eu não sei se mudou, mas eu acho que é isso ainda, que chama AuditFarma. Esse AuditFarma é um programa que fica em todas as grandes redes de farmácia, que toda receita que chega com o nome do médico e nome do produto passa por esse AuditFarma, um escâner, assim, e esse resultado vai pra todos os laboratórios que fazem o pagamento para ter esse resultado na farmácia."
A prática já está no radar das autoridades. A Anvisa não nos concedeu entrevista, mas uma norma, que está em vigor desde 2009, regula a oferta de brindes e amostras grátis aos médicos. E tanto o Conselho Federal de Medicina quanto a Interfarma, Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa, afirmam ter códigos de ética que orientam a relação entre médico e empresa. O secretário-geral do Conselho Federal de Medicina, Henrique Batista e Silva, fala sobre as regras para patrocínio de congressos médicos pela indústria farmacêutica:
Henrique Batista: "Esses encontros devem ser feitos sob contrato sem que a empresa patrocinadora faça qualquer ingerência ou interferência na elaboração da programação cientifica. Também não pode interferir nas pessoas que vão falar, dos relatores. E essas empresas estão respeitando isso muito bem ultimamente."
Segundo Henrique Batista, o médico palestrante deve declarar os possíveis conflitos de interesse na sua fala, como a sua ligação profissional com uma empresa. O médico, neurocientista e professor Olavo Amaral reconhece os esforços regulatórios para reduzir a influência da indústria sobre a prática médica, mas ainda vê problemas nessa relação, pois muitos médicos conceituados e que são referência para os demais são também consultores ou palestrantes pagos pelas empresas.
Olavo Amaral: "A literatura médica hoje é muito vasta, é muito complexa, tem muitos estudos. É impossível para um médico individual estar a par de tudo sobre todos os remédios que ele prescreve. Mesmo que não tivesse indústria farmacêutica nenhuma, é impossível a pessoa estar 100% atualizada. Acho que os médicos fazem o seu melhor. Então, assim, a gente tem que escolher o que ler e o que estudar e o que ter acesso e, de novo, quando a gente coloca a educação médica e o marketing na mão da indústria, a gente faz com que a indústria selecione o que você está lendo e só essa seleção do que eles dão para você ler, a que eles expõem você, só essa seleção já é enviesada para o lado deles. Essa influência da indústria faz com que as pessoas acabem tendo uma opinião enviesada, que acabem tendo maus hábitos de prescrição e que elas possam eventualmente prejudicar o paciente."
Eu conversei, também, com o Renato Tamarozzi, que é presidente-executivo da ABCFarma, Associação Brasileira do Comércio Farmacêutico. Ele explicou sua posição em relação à prática das farmácias de fornecer aos laboratórios dados das receitas apresentadas pelos clientes, como os nomes do médico e do medicamento indicado, aquela que foi denunciada pelo ex-representante de remédios no início da reportagem.
Renato Tamarozzi: "O consumidor pode se tranquilizar, porque não há mais razão em relação à questão da qualidade dos produtos vendidos no País. Porque eles são feitos testes e são fiscalizados pela Anvisa. Agora, em relação à bonificação, isso já está superado, eu não posso entrar na questão comercial do que faz a indústria, porque cada indústria opta pelo seu modelo de negócio e ela, atuando dentro das normas legais, não há o que falar em relação a essa questão."
O deputado Chico Lopes, do PCdoB cearense, é relator de um projeto de lei que caracteriza como corrupção médica a conduta de solicitar ou aceitar vantagem indevida de fabricante ou distribuidor de dispositivo médico implantável, ou prótese. Apesar de o projeto não incluir medicamentos, o deputado vê como problemática, também, a oferta de vantagens aos médicos para que prescrevam medicamentos de interesse dos laboratórios. Mas diz que outras instituições, além da Câmara, precisam reprimir essa prática.
Deputado Chico Lopes: "A agência reguladora foi criada para fiscalizar, normatizar, mas parece ter dificuldade ou não tem interesse ou eles acham que deve ser assim mesmo: a saúde se transformar em mercadoria e o médico se transformar em comerciante. (...) Agora, o Conselho Federal de Medicina também devia fiscalizar, ou o sindicato dos médicos, fiscalizar esse comportamento, porque é aético e a vida das pessoas fica ao sabor do médico ser honesto ou desonesto, comerciante ou médico."
Bem, estamos acostumados a pensar a ciência e a Medicina como conhecimentos exatos, precisos, baseados em evidências. Mas, na visão de alguns dos nossos entrevistados, a presença ostensiva da indústria farmacêutica na pesquisa de novos medicamentos e sua relação com a prática médica podem comprometer a isenção dessas evidências. E os médicos acabam reféns dessa informação enviesada. Por isso, foi criada na Universidade Federal de São Paulo, uma disciplina chamada “Medicina baseada em evidências”, que busca ensinar os futuros médicos a filtrar melhor as informações que recebem. Mas, segundo o professor responsável por ela, Álvaro Nagib, só 20% das escolas médicas do país ensinam algo parecido com isso.
Como médicos são assediados pela indústria farmacêutica para prescrever medicamentos

Indústria da Doença: laboratórios presenteiam médicos em troca de indicações de medicamentos.





Fonte: http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/radio/materias/REPORTAGEM-ESPECIAL/515048-INDUSTRIA-FARMACEUTICA-RELACAO-MEDICO-X-INDUSTRIA-X-FARMACIAS-BLOCO-2.html

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